24.11.12

um rosto, biliões deles


«Qual é o teu ano de nascimento?, Quem és tu?, O que é que tu mais desejas?» Um documentário muito curto e muito simples. Não se vê o que nele é amplo e nada simples; não se vê o que dura uma vida inteira ou, mais bem dito, muitas, milhares, biliões de vidas inteiras.
[Krzysztof Kieslowski. Gadające głowy [Talking Heads]. (1980]

fotografia

o sentido da morte





















As pessoas deveriam ter o direito de morrer pelo menos duas vezes: uma, para as vermos e sentirmos como nunca as vimos e sentimos; outra, depois de finalmente as termos vivido como nunca as vivemos, para então darmos sentido à morte delas.

[Imagem: Luchino Visconti. Morte em Veneza. 1971]

alone





























[Andrey Tarkovski. O espelho. 1975]

estado de código

























É muito difícil, talvez impossível, encontrar um retrato de Annemarie em que a mesma esteja a sorrir, a rir, a soltar uma gargalhada já seria mais do que impossível. Está quase sempre séria, com o olhar virado para dentro (espelho de uma alma quase física e parece estar doente), o olhar muito ensimesmado; por vezes, até, muito perturbado e, acima de tudo, supõe-se terrivelmente triste. No contorno do olhar de Annemarie surge-me uma sensação de limite que se impõe entre o olhar e a massa física do corpo. Aquele olhar, do modo como é capturado pelo meu olhar, vai no sentido do abandono do corpo, tal como as peças de Arvo Part vão no sentido do abandono do piano. Um olhar que avança para um estado de código; como o do Buster Keaton, parece que nunca se riu na vida e que não fazia nada por isso; simplesmente parece que nunca se riu nem haveria de rir e há qualquer coisa de muito confortável nisto que eu não ouso tentar explicar.

consigo mesmo

Aprender a amar a solidão, estar mais vezes só, consigo mesmo.
[Andrei Tarkovsky. Um dos muitos comentários sobre a fita Andrei Rublev.]

tempo completo























O «O Artista» [2011] repõe o tempo certo do cinema, um tempo que não cede aos ciclos lineares da História da Arte e, no entanto, é uma fita de pleno século XXI, isto é, uma fita tecnicamente completa, mas sem ruído. Um grito sem ruído. O chamado filme mudo nunca é mudo e este muito menos. Fala mais alto do que outro qualquer, porque dá voz à estrutura da intimidade, à raiz das emoções, ao grito da humanidade. O «O Artista» merece uma tela gigante e a crítica de quem sente, de quem é capaz de rir e chorar sem fazer barulho, como quando choramos a ver o «Aurora» [1927], de Murnau, ou nos deixamos tocar por «Um rosto na multidão» [1957], de Elia Kazan. Esta fita é completa; é a fita completa que faltava à história do cinema do século XXI, do século XX, do tempo completo.

only you

If you had no name
If you had no history
If you had no books
If you had no family

If it were only you

Naked on the grass
Who would you be then?
This is what he asked

And I said
I wasn't really sure
But I would probably be
Cold

And now I'm freezing

Freezing


[Philip Glass/Suzanne Vega]

terapia





















Tudo nesta série - «In Treatment» - é conforto, mesmo em se tratando de uma série que acontece nos contornos mais perturbantes e inquietantes da condição humana; é uma série que acontece nas zonas mais indiscerníveis do humano. As personagens principais são as vozes e, principalmente, as vozes em silêncio. Uma vez por outra, chove do lado de fora do consultório do Dr. Paul Weston e ouve-se tão bem a chuva a bater na vidraça, coisa rara em televisão, que apetece estar lá, do lado de dentro, a olhar para as coisas do lado de fora. Na primeira temporada, o consultório é uma divisão da casa onde vive o Dr. Paul. O cancelo que dá para a porta de entrada dos "pacientes" faz um rangido de cada vez que um deles chega e o abre para uma nova sessão. Para mim, a terapia começa imediatamente depois do rangido do cancelo. Para mim, a terapia começa no próprio rangido do cancelo. No interior do consultório, uma espécie de ampulheta de água induz-nos o consolo de um tempo mais demorado; um tempo que não queremos que acabe enquanto dura cada um dos episódios. Um tempo que queremos demorado, sobretudo quando tudo é bem mais complicado para lá da vidraça, da porta, do gemido do cancelo que dá para o mundo.

adio, Gradisca






















«Amarcord», de Fellini. 1973. Vê-lo como quem revê, com outra espécie de maturidade, as origens antropológicas. Para quem nasceu, viveu (no meu caso) ou vive, cresceu ou cresce parte ou grande parte da sua vida no Norte de Portugal, ver ou rever «Amarcord» corresponde a uma viagem no tempo; corresponde a uma revisitação à maternidade popular mediterranicamente mais entranhada e aos desejos mais puros da "adolescência", ainda que amiúde atropelada pelas fantasias mais secretas da libido. A sala de cinema não estava plenamente composta, mas deu para criar um ambiente de gargalhadas colectivo, mas também, e principalmente, de risos que despertavam, aqui e acolá, da memória distante de apenas alguns. A memória de quem viu e viveu a algazarra das aldeias nortenhas de Portugal, de quem sabe de que cepa são feitas aquelas mães, de quem se deixou contagiar por uma erótica antropológica cuja química se escondia das mães e dos padres no genuflexório da culpa. «Amarcord» reflecte bem a trilogia salazarista em tudo semelhante à fascista italiana e que, no Norte de Portugal, por comparação com o resto do país, ainda se oferece escancaradamente a quem, tendo mérito para tal, ouse levantar uma câmara de filmar e refazer um «Amarcord» à portuguesa. A terra de onde venho é um microcosmos veemente de tudo isto. «Amarcord», de uma comicidade rústica à boa maneira da festa na aldeia do Tati, e de uma seriedade tão própria das mães viscontianas, é um filme tão detalhado como paradigmático; tão exótico como matricial. Não sei o que sentiria, depois de o ver, se tivesse nascido para ser ou representar durante uma vida inteira uma mãe Miranda Biondi, uma prostituta Volpina ou uma daquelas professoras de Antigo Regime. Sei o que senti sendo sandra costa, vinda de um meio tão parecido e com a capacidade (sabe Deus de onde virá) de desconstruir as muitas imagens e personagens que cada pessoa, em si mesma, representa. Sou, pois, esta sandra costa que se emociona com «Amarcord» e que ainda se despede daquele tempo como quem diz, carregada de nostalgia: "Addio, Gradisca".

simetria

liquid days

cinema: explicação do silêncio

Os arquivos da História estão dispersos um pouco por toda a parte; felizmente desarrumados pelo mundo, esses arquivos admitem os fragmentos de um pano de (in)certezas acontecidas (ou não), abrigo de um corpo histórico (Homem) que, na sua totalidade, prefere migrar nu. Dos variadíssimos repositórios de memórias emerge o cinema, sublime arquivo de idiomas visuais, existe para melhor vincular os seus leitores às imagens sem-fim do devir mundano. Imagens que se movem na tela e nos transportam para lugares de fora e lugares de dentro, imagens que, diante de nós, no imediato parecem estar, estar sem mais e, no entanto, oferecem ao nosso imaginário atento a expectativa do lugar inesperado quanto infinito: o lugar longo e volátil do idioma jamais falado. Na sua plenitude, a imagem existe, em suma, para dar lugar à imagem, não escapando, portanto, à sua dimensão mais pura: o silêncio. À impossibilidade de explicarmos por narrativas outras o completo devir humano, a linguagem fílmica na sua projecção silenciosa actua com sucesso sobre o silêncio do leitor projectando-o, ao leitor, na tela, lugar onde, afinal, parece assentar mais possível a explicação do seu próprio devir, o devir íntimo. Em cinema há um movimento universal de transferência de silêncios visuais que anima a desarquivação de toda a História, a nossa e a dos outros, deslocando, por isso, o nosso tempo para o tempo dos outros e vice-versa, aproximando-nos dos tempos e dos lugares que nunca foram nossos, mas nos quais nos identificamos. Por conseguinte, o cinema é justo, porque ilimitável; projector da imagem-ponto de fuga rumada ao seu próprio ponto de fuga; na boca silenciosa da imagem o cinema antecipa a explicação do mundo - o nosso, íntimo; o dos outros, igualmente íntimo; é pois o corpo que migra mais nu, em silêncio, transportando um colectivo fragmentável de íntimos silêncios -- procurando-se uns aos outros, reencontrando-se uns nos outros -- no exacto ponto entre a vida e a tela. Ora, o cinema como arquivo de identificações silenciosas ou desarquivo de identidades.

deserto vermelho


[Il deserto rosso. 1964]

My intention was to translate the poetry of the world, in which even factories can be beautiful.
Michelangelo Antonioni

deserto urbano

Os desertos são para recomeçar. Elimino os objectos rígidos da cidade e recomeço na imagem do deserto de modo a que esta seja o garante da minha sobrevivência na cidade. A realidade do deserto não me protege contra o invisível uma vez que o deserto, ele mesmo, é uma realidade metafísica. Contra a imobilização das imagens da cidade, a evidência do deserto é alucinatória e funcional, uma intimidade psicológica instável, de natureza polimórfica, onde tudo, no espaço infinito, pode acontecer. Recomeço no deserto para me proteger contra os objectos rígidos, contra o visível.

grafito urbano




Os desertos são para recomeçar.
[Spike Lee. 25th Hour. 2002]

projectos de vidro [IV]



























[Casa H - Wiel Arets Arquitectos]

projectos de vidro [III]

Este bloco de notas serve o gosto pelo recorte de tendências, não fazendo delas colecção. Por exemplo, a solidão e o desejo são duas tendências entre as mais, embora destas, como de todas, me ocupe com outro cuidado por serem feitas de vidro. Bole-se muito no vidro e ele parte. Há numerosas inclinações feitas de vidro, que não importam tanto como textos quanto a experiência de dor e de alegria que as mesmas comportam e que do texto se desvia. Ou, se calhar, é tudo ao contrário, é o que vos digo. Os textos não quebram, os livros tropeçam do escaparate, abrem-se no ar e as folhas não quebram no chão; no papel o traslado fonético não perturba como o grito da boca que ao tom deu a ideia de grito e, no entanto, os textos são a experiência misteriosa das pequenas percepções invisíveis: a alegria ou a dor de sermos o que nunca fomos, a alegria ou a dor de reencontrarmos os lugares onde nunca estivemos, a linha de tempos outros que recordamos como nossos ou a variação de corpos que sempre entroniza os limites de um só corpo.
Aquilo que se convencionou chamar realidade é tão-somente um esboço de ficção que estorva a dimensão de uma experiência inteira e só aparentemente periférica - uma experiência de texto. Uma experiência de texto é uma experiência que totaliza o fragmento de qualquer vidro, atribuindo-lhe a importância que é devida à intensidade da coisa mutilada. Aquilo que se convencionou chamar realidade é uma ficção que mata o Homem sem que lhe tenha consentido a vida.

[projectos de vidro I  e  II]

projectos de vidro [II]

Todos os dias observo, na cidade, mulheres e homens que tomam café para acordar o corpo até aos joelhos; numa escala de baixo para cima, todos os dias vejo homens e mulheres que tomam café para enervar o corpo dos pés aos joelhos. Quem são estas mulheres e estes homens adormecidos dos joelhos para cima? Saberão que existem? Existirão? As personagens dos meus livros, por exemplo, nunca dormem. Algumas matam-se e continuam acordadas, mas mais tranquilas. Todos os dias vejo mulheres e homens que dormem debaixo de um céu postiço, são apenas joelhos nervosos virados para baixo.
Não percebo como existo, se serei eu mesma quem vê estes homens e estas mulheres; não percebo onde existo, se serei uma personagem de um livro lida por uma pessoa que vê todos os dias homens e mulheres adormecidos da cabeça até aos joelhos? Fui escrita por quem? Sendo uma personagem criada (e por quem?), serei postiça? O que me irá acontecer? Virei a ser lida até ao fim? Quem estará a ler-me neste momento? O que vai acontecer à pessoa que me lê? Ou, então, quem são os outros todos que não surgem dos livros e que, ainda assim, parecem menos reais do que eu? Vivo numa página do mundo ou no mundo de uma página? Para viver, sei que me bastaria uma página para esboçar a cidade, mas não passo do leitor de uma outra página ou alguém a quem o café ainda não acordou dos joelhos para cima. Hoje sinto-me tranquila, como as personagens que se matam nos meus livros, será que morro de vez em quando ou estarei adormecida no exacto momento da página em branco? Sei que sou, mas como? Mas onde?

[projectos de vidro I]

projectos de vidro [I]

Busco predisposições em todos os dias da minha vida, algumas delas feitas daquilo que se abandona e outras feitas daquilo que se perde. Estou a imaginar a voz de Elzbieta Towarnicka sem que a possa tocar, como se fosse uma voz que se perdeu para sempre ou um vidro inteiro que, sozinho, vai na finalidade do estilhaço. Elzbieta Towarnicka é uma voz que me acorda o útero e a cabeça e demais acabamentos do corpo que eu sei que existem, porque ainda há vozes que me acordam. Acordar é um destino, uma condição de acesso sem saída, a não ser que por baixo da terra exista uma porta de vidro do formato da emergência. Acordar também poderá ser condição de acesso sem possibilidade de retorno ao que antes terá sido apenas um de tantos começos. Estou aqui a pensar um assunto em voz baixa. Nós pequenos no mundo tão grande, tão pequeno o mundo no universo maior. De que tamanho é a ruína do que nunca foi completo? De que tamanho é a vida ou, apenas, esta cidade?

espelho

Quem é este corpo que surge como intrusão nocturna? Que penetra sorrateiro uma fresta da minha cama e freme como as avenidas de Nova Iorque ou a última intimidade das prostitutas. Uma pele cheia de noite, um estranho de passagem como os táxis da 5ª Avenida, célere como um criminoso, impaciente, sozinho Um corpo que mora paredes meias com a chantagem dos dias, que concilia o mundo com o lugar exilado da noite, que rouba das horas o lucro dos ricos, quem é este corpo?

solidão

Na solidão em que entrei, as medidas deste mundo, se subsistem, é para manter em nós um sentimento vertiginoso do desmedido. 
[Georges Bataille]

cor e meia luz


























[William Eggleston. Greenwood, Mississippi. 1973]

erótica

A erótica da cidade nocturna recupera em mim o espanto. As janelas das fachadas, a meia luz, são uma intermitência onde tudo pode acontecer; cada uma das janelas a meia luz é uma singularidade incompleta que se apodera de nós como o enigma de uma mulher calada de olhos abertos. À noite, o ritmo das casas é outro, fica-se com a alucinação de que elas nos propõem uma ideia de posse e de pertença, uma extensão erótica da nossa pessoa que tanto poderia estar dentro de uma como de todas as outras.

o informe

Toda a rigidez da cidade está em permanente dissolução. Isto sente-se mais num fim de tarde de outono conforme caminho à luz dos candeeiros das avenidas. A certeza das fachadas é abandonada a uma lógica de inconsistência, a um movimento aberto cujo rasto se perde na sombra que elas projectam no empedrado. A chuva transforma os objectos em coisas improváveis, em formas cuja potência tende para a sua própria deformação. Eu não sou localizável em parte alguma e tão-pouco a cidade se localiza em si mesma.

alone

























 [Vivian Maier. Florida. 1957]

aleatório












 


















Gostaria de ser capaz de explicar o mundo por baixo dos telhados. Sempre achei que há mais mundo por baixo dos telhados. Não será necessário ler Fernando Pessoa ou elevar-me nas gruas da cidade para compreender o que eu mesma não saberia explicar. Ninguém, jamais, saberá explicar o mundo que existe por baixo dos telhados. Um bebé que palra, um orgasmo que foi possível sem sofrimento, um papel puxado pela corrente, a retórica das mulheres como a passagem das coisas, o limite da duração, as infinitas variações do fim de um diálogo, a utilização do erro como experiência que faz sentido, o movimento infinito que toca as conclusões, a incerteza e as suas interferências, a introdução do mundo quase operativa, ainda apenas uma introdução.  

sombra

































Sozinho na sala branca. As costas viradas para a presença da sombra.
[Juan Muñoz. Fotografia. SdC. Serralves/Dez. 2008]


espaço





































A cidade é biológica. A sensação mais forte e primária que ela desperta vem-lhe do volume que lhe confere profundidade; sem volume não haveria espaço para as pessoas e os objectos, não haveria condição possível para a projecção das nossas acções, da nossa energia, da nossa vida. Sem volume, não haveria espaço para o tempo descontínuo, para a totalização descontínua das nossas experiências ópticas. A forma convencional e estática dos corpos e dos objectos é destruída e reconstruída para dar lugar à experiência pluridimensional do tempo dos corpos e dos objectos, porque o tempo da cidade dos Homens é, acima de tudo, o espaço pluridimensional do Homem vivo. Por exemplo, a fachada é a pele da existência humana e nem mesmo ela é um motivo estático, porque a fachada é uma pele que se constrói para dentro, onde tudo pode acontecer.

arte negra














































O corpo negro serve de modelo primitivo e é perfeito.
[Vivian Maier. Março/1957]

isaura

Isaura, cidade dos mil poços, presume-se que se situe por cima de um profundo lago subterrâneo. Por toda a parte onde os habitantes escavem na terra longos furos verticais conseguem tirar água, e foi até aí e não para além desses limites que se alargou a cidade: o seu perímetro verdejante repete o das margens escuras do lago sepultado, uma paisagem invisível condiciona a visível, tudo o que se move sob o sol é impelido pela onda que bate encerrada sob o céu calcário da rocha.
Por consequência, dão-se religiões de duas espécies em Isaura. Os deuses da cidade, de acordo com uns, habitam as profundidades, o lago negro que nutre as veias subterrâneas. Segundo outros, os deuses habitam os baldes que sobem pelas roldanas quando saem fora da boca dos poços, nas polés que giram, nos cabrestantes das noras, nas alavancas das bombas, nas pás dos moinhos de vento que puxam a água dos furos artesianos, nos castelos das plataformas que sustêm o aparafusar das sondas, nos reservatórios suspensos sobre os tectos em cima de andas, nos arcos finos dos aquedutos, em todas as colunas de água, nos canos verticais, nos ferrolhos, nas válvulas, até às girândolas que se sobrepõem aos andaimes aéreos de
Isaura, cidade que se move toda para cima.

[Italo Calvino. As cidades Invisíveis. As cidades subtis. Trad. José Colaço Barreiros]

alone

























 [Katherine Joyce (Ingrid Bergman). Viaggio in Italia (1954). Dir. Roberto Rossellini.]

a fronteira

A dada altura -- mais exactamente algures na página 152 -- C.E. escreve a seguinte frase: «La force meurtrière de l'oeuvre d'art.» Fico-me em silêncio durante muito tempo, pensando numa tradução possível da mesma ou, mais bem dito, na que me pudesse parecer a melhor das traduções impossíveis. C.E. foi um pensador demasiado inquieto para que das suas frases se possam arrancar traduções conclusivas, pelo que «A força assassina da obra de arte» me parece uma tradução demasiado óbvia e injusta, quer para o autor destas palavras, quer para o metabolismo identitário desse gigante assimétrico que é o conceito Arte. Por outro lado - e trabalhando particularmente a palavra meurtrière - em esta significando seteira [1], retraduzo-a livremente para fronteira. O resultado, no todo, soa-me o menos evidente e sinto, por momentos, que E. aprovaria: «O poder fronteiriço da obra de arte.» Poucas coisas na vida me parecem nada axiomáticas e tão inquietantes como o são as fronteiras, sejam estas físicas ou, e principalmente, as da interioridade do Homem e da Arte humana.


[1] Seteira, s.f. Fresta estreita aberta em parede para dar claridade a uma habitação que não tem a janela. Fresta estreita aberta na muralha.

erros triunfantes



























Não desisto. Tenho a noção de que toda a minha vida cabe numa partitura Preisner; é simples: há um começo que me aproxima da batalha e uma batalha decide sempre o regresso a casa ou um holocausto sem retorno à tranquilidade dos lagos; há um conto de amor que desagua para morrer algures entre a batalha e o regresso a casa, lugar que as montanhas frias escondem por serem mães protectoras da cidade. Tenho a noção de que o que está escrito para trás ainda não presta nem retine e continuo com os mesmos erros: por ora, não altero o que está, deixo estar o que está como está, o blogue e demais cadernos são meus embora os erros não sejam ainda meus, mas a fé com que alimento os erros também é minha. Continuo a dizer a mim mesma que vale a pena procurar as cem mil razões que me levaram a errar uma vez, duas, três vezes, porque sei que pelo encontro e a explicação dessas cem mil razões poderei recriar os erros para que um dia mereça os meus próprios erros: então não terei perdido tudo e também por isso não terei de alterar nada; o nada inalterável não se perde nem se ganha, e porque ocupa pouco espaço -- o espaço de um bolso -- nada caberá sempre numa partitura Preisner, que é simples: está repleta de erros triunfantes à espera do progresso difícil dos meus próprios erros.

alone

                      [«La Notte», 1961, Lidia (Jeanne Moreau)]

limite [esboço]

A cidade lembra-me frases soltas e feias que me desagradam, mas que, ainda assim, são belas à luz da hermenêutica Preisner, do atlas Glass, dos detalhes Sakamoto. De tudo faço um esboço à mão levantada, como se fosse arquitecta, uma arquitecta da intimidade. Não é nada fácil esboçar a diferença entre o ritmo dos passos de um comerciante charmoso e os de um operário sujo com olhos de chama. É difícil escrever a linguagem das flores nos canteiros das janelas e das ervas daninhas dos jardins abandonados. Observo, por exemplo, os pais que levam as crianças à rua sem que lhes expliquem para que serve uma rua, uma estrada, um mapa, e não sou capaz de traçar uma única frase que explique a violência das relações. Por certo, um mapa não servirá para nada, mas há tanto por onde se falar sobre nada. Os corpos e as coisas dados à minha observação não são suficientes para que deles se trace uma única linha, porque escondem uma série de potencialidades figurativas, escondidas, secretas, dominadas pelo princípio da vida: metamórfico, insatisfeito e inquieto. Tudo o que é feio e belo leva já em si a potência do embate tectónico emergente da profunda incerteza das coisas feias e belas. E tudo me parece emocionalmente violento, difícil e quase impossível, porque as emoções só fazem sentido se forem violentadas e dessa violência se ultrapasse o limite das coisas meramente visíveis.

imagens (in)visíveis






















Secreto, o referente que sustenta a força de uma fotografia é a imagem que a fotografia não mostra, mas que admite estar prestes a revelar, dir-se-ia uma contra-imagem, dir-se-ia uma contrafortagem; quem sabe a fragilidade do objecto fotografado potenciada pelo fotógrafo, ou a própria fragilidade do fotógrafo potenciada pelo objecto fotografado. Em ambos os casos, a fragilidade é sempre invisível e, no entanto, revela-se por indução de força onde deveria abundar debilidade; vemos isto, por exemplo, na força de um rosto doloroso que esconde sempre a imagem da fragilidade que lhe dá a consistência poderosa. Barthes tem razão: uma fotografia é sempre invisível, não é ela que nós vemos. O que vemos é somente o resultado tremendamente bem sucedido do que não vemos, fenómeno que legitima, por conseguinte, uma alucinose de valor artístico à fotografia, e quem diz à fotografia, diz a tudo o mais.

arquitectura íntima




















E achavas tu que de Borges nada sabias e, afinal, faltava a evidência de que nada sabias. Estás no teu corpo, concebes um projecto de intimidade sem estradas, sabes que a tua porta dá para a rua do mundo e sais. Sem estradas, concebeste no teu corpo o tal mapa de linhas invisíveis, ruínas circulares e o jardim dos caminhos que se bifurcam e sempre existiram antes do conhecimento visível do conhecimento. É, pois, na pátria íntima que tu começas a consentir matéria à ideia, e é esta mesma pátria íntima que, no curso das tuas viagens, deves impôr à realidade dos encontros visíveis, não para que encontres a felicidade, mas para que mereças a matéria mais propícia à felicidade: como, por exemplo, uma rua qualquer compreendida para a evidência de um destino literário que tu, só agora, não conheces e começas a procurar.

cidade invisível


















A totalização da cidade opera-se na sua invisibilidade e isto faz com que a minha visão não seja interrompida pelos elementos tácteis. Sou eu que comando as formas e, não estando impedida pelas formas, torno-me o símbolo de uma mulher visualmente activa gerindo, ela mesma, o seu universo e recusando ser escrava dos limites que matam o sonho. Tudo o que é visível na cidade desaparece para dar contorno à invisibilidade da cidade. A desmaterialização das formas dá-se na arquitectura da interioridade, no acontecimento das emoções mais fortes e mais primárias. Há que destruir o motivo das coisas para dar visibilidade à profundidade, quente e orgânica, do volume das coisas.

alone



































  
[William Eggleston. Memphis c.1969-70]

out of balance




As pessoas comem, dormem, compram, amam, matam e fodem à mesma velocidade. Eis o tempo moderno. Dentro da cidade sou eu dentro de mim e todas as hipóteses do meu olhar sobre as coisas e sobre as pessoas, regra geral bloqueadas pela teoria dos vencedores, são infinitamente desmontadas pelo espectador total que sou eu, rendida à universalidade dos detalhes, à poiesis dos vencidos. Caminho na linha das ruas em câmara lenta, sozinha como o sol que nasce contra os muros da cidade, sozinha como os bairros verticais projectados para as pessoas pobres. Sou 2870 apartamentos iguais com milhares de pessoas diferentes no seu interior, milhares de pessoas diferentes que comem, dormem, compram, amam, matam e fodem à mesma velocidade. À minha passagem, ninguém se apercebe de que a minha imagem reflecte na cidade a potência extraordinária da deformação, e a cidade não passa de um projecto de demolição de mim mesma dentro de mim mesma. Estou só e tudo o que amo, amo, projecto e destruo sozinha tanto quanto me amo, projecto e me destruo sozinha.

no man's land






































[Pruitt-Igoe, St. Louis; série da destruição em 1972.]

em aberto

















A paixão conduz-me à narrativa da cidade. A minha chegada, repleta de processos psicológicos, atribui às coisas e às pessoas uma noção móvel do espaço e do tempo; o que está em aberto na viagem é a experiência de uma realidade que não pode ser fechada e que, em última análise, se apaga no inconsciente, no irreal, no nada, isto é, na ficção de uma outra realidade.

i loved alone

Ergui a cabeça para ver melhor a grande fachada industrial e herdei imediatamente o poder vivo e heterogéneo da cidade que me ocupava. Interessei-me pelos projectos do mundo em apenas um recorte urbano e nele senti a força lírica e invisível dos detalhes que animam o corpo e alegram o espírito. Fiz o meu olhar intervir em torno do que sentia e não fui capaz de esboçar uma única linha sobre o que via e o que não via. Restou-me a esmagadora sensação de não ter tido com quem partilhar a distância que um olhar rapidamente a tudo me unia e desunia. Tudo o que ali amei, amei sozinha. Enfim, tudo o que se ama, ama-se sozinho, e esta ideia tão metida no plano das sensações cabe perfeitamente no bolso de umas calças.

all i loved

             [Gilbert Garcin. Idylle nocturne - Night romance. 1996]

From childhood's hour I have not been
As others were; I have not seen
As others saw; I could not bring
My passions from a common spring.
From the same source I have not taken
My sorrow; I could not awaken
My heart to joy at the same tone;
And all I loved, I loved alone.
(...) 

Edgar Allan Poe