29.9.13

edgar allan poe

Almada-Negreiros parece ter definido muito bem o ofício monumental do tradutor: alguém que inventa outra vez as palavras que já foram inventadas. Mas a arte de traduzir não se fica por aqui, porque além da palavra que outra palavra inventa, há o ritmo que prossegue a invenção e a imagem que sempre a precederá.
Estou a ler os poemas de Poe traduzidos quer por Fernando Pessoa quer por Margarida Vale de Gato. A minha intuição diz-me que me parece bastante medíocre a tentativa tradutória de Margarida V. de Gato sobre os poemas do escritor americano. Por exemplo, nestes dois versos do poema The City in the Sea, no esforço de ir além da mera literalidade, a tradutora menoriza a função primordial, arquitectonicamente esmagadora, da imagem horrífica da morte sobre a cidade poética de Poe.

While from a proud tower in the town
Death looks gigantically down

Enquanto a morte altiva, na seteira,
Vigia a cidade, sobranceira

Fernando Pessoa, pelo contrário, traduziu magistralmente Edgar Allan Poe; a qualidade literária do nosso escritor faz dele um tradutor que extravasa a tradução meramente literal sem que o ritmo da palavra novamente inventada jamais traia as imagens que dão significado e sentido aos poemas de Poe muito antes da função literária das palavras de Poe.

Ora, para traduzir o verso Death looks gigantically down, é preciso, antes de tudo, ter-se a capacidade de subir à torre ou a coragem de assumir, sem tabus, que se está cá em baixo a ser permanentemente olhado pela morte gigantesca. Traduzir Poe é vê-lo antes de o ler e, acima de tudo, deixarmo-nos ser vistos por ele, por mais terrífica que seja a imagem desse olhar. Há, pois, todo um abismo que separa o verdadeiro tradutor do tradutor medíocre, tal como a morte separa o Homem da Vida.

(Terá Fernando Pessoa traduzido o mesmo poema? A tê-lo feito, porra, como fico em suspense nestes dois versos.)