Os
arquivos da História estão dispersos um pouco por toda a parte; felizmente
desarrumados pelo mundo, esses arquivos admitem os fragmentos de um pano de
(in)certezas acontecidas (ou não), abrigo de um corpo histórico (Homem) que, na
sua totalidade, prefere migrar nu. Dos variadíssimos repositórios de memórias
emerge o cinema, sublime arquivo de idiomas visuais, existe para melhor
vincular os seus leitores às imagens sem-fim do devir mundano. Imagens que se
movem na tela e nos transportam para lugares de fora e lugares de dentro,
imagens que, diante de nós, no imediato parecem estar, estar sem
mais e, no entanto, oferecem ao nosso imaginário atento a expectativa do lugar
inesperado quanto infinito: o lugar longo e volátil do idioma jamais falado. Na
sua plenitude, a imagem existe, em suma, para dar lugar à imagem, não
escapando, portanto, à sua dimensão mais pura: o silêncio. À
impossibilidade de explicarmos por narrativas outras o completo devir humano, a
linguagem fílmica na sua projecção silenciosa actua com sucesso sobre o
silêncio do leitor projectando-o, ao leitor, na tela, lugar onde, afinal,
parece assentar mais possível a explicação do seu próprio devir, o devir
íntimo. Em cinema há um movimento universal de transferência de silêncios
visuais que anima a desarquivação de toda a História, a nossa e a dos
outros, deslocando, por isso, o nosso tempo para o tempo dos outros e
vice-versa, aproximando-nos dos tempos e dos lugares que nunca foram nossos,
mas nos quais nos identificamos. Por conseguinte, o cinema é justo, porque
ilimitável; projector da imagem-ponto de fuga rumada ao seu próprio ponto de
fuga; na boca silenciosa da imagem o cinema antecipa a explicação do mundo - o
nosso, íntimo; o dos outros, igualmente íntimo; é pois o corpo que migra mais nu,
em silêncio, transportando um colectivo fragmentável de íntimos silêncios -- procurando-se uns aos outros, reencontrando-se uns nos outros -- no exacto ponto
entre a vida e a tela. Ora, o cinema como arquivo de identificações silenciosas
ou desarquivo de identidades.