24.11.12

projectos de vidro [II]

Todos os dias observo, na cidade, mulheres e homens que tomam café para acordar o corpo até aos joelhos; numa escala de baixo para cima, todos os dias vejo homens e mulheres que tomam café para enervar o corpo dos pés aos joelhos. Quem são estas mulheres e estes homens adormecidos dos joelhos para cima? Saberão que existem? Existirão? As personagens dos meus livros, por exemplo, nunca dormem. Algumas matam-se e continuam acordadas, mas mais tranquilas. Todos os dias vejo mulheres e homens que dormem debaixo de um céu postiço, são apenas joelhos nervosos virados para baixo.
Não percebo como existo, se serei eu mesma quem vê estes homens e estas mulheres; não percebo onde existo, se serei uma personagem de um livro lida por uma pessoa que vê todos os dias homens e mulheres adormecidos da cabeça até aos joelhos? Fui escrita por quem? Sendo uma personagem criada (e por quem?), serei postiça? O que me irá acontecer? Virei a ser lida até ao fim? Quem estará a ler-me neste momento? O que vai acontecer à pessoa que me lê? Ou, então, quem são os outros todos que não surgem dos livros e que, ainda assim, parecem menos reais do que eu? Vivo numa página do mundo ou no mundo de uma página? Para viver, sei que me bastaria uma página para esboçar a cidade, mas não passo do leitor de uma outra página ou alguém a quem o café ainda não acordou dos joelhos para cima. Hoje sinto-me tranquila, como as personagens que se matam nos meus livros, será que morro de vez em quando ou estarei adormecida no exacto momento da página em branco? Sei que sou, mas como? Mas onde?

[projectos de vidro I]